Crónica de hoje da Leonor Pinhão
Já tínhamos saudades de uma boa guerra Norte-Sul
A 5.ª jornada do campeonato terminou em beleza.
Beleza é pouco tendo em conta que o treinador do FC Porto guindou o treinador do Benfica à condição de Santo da nossa Igreja. Fazer-se sentir, ou mesmo aparecer, em vários lugares ao mesmo tempo só está ao alcance de gente raríssima como São Gregório, Santo António de Lisboa ou São Nicolau, eméritos taumaturgos.
- Santo António de Lisboa, não! Santo António de Pádua! – gritará Adelino Caldeira furibundo do alto da tribuna de honra do campo do Estoril-Praia num exercício vocal todo ele destinado a combater a macrocefalia da capital.
Mal saberá, porventura, o administrador da SAD portista que em Pádua, para mal dos seus pecados, até existe uma Praça da Fruta. Para mal dos pecados da bela cidade de Pádua, não dos pecados de Adelino Caldeira, obviamente. E é na Praça da Fruta que se ergue, desde o seculo XIV, o lindíssimo edifício do Palácio da Razão.
Fruta e Razão, Razão e Fruta, tal como os padovanos, andamos nisto há imenso tempo.
A verdade é que a 5.ª jornada teve o seu quê de miraculoso porque, coisa rara, raríssima, o FC Porto foi prejudicado pelo árbitro numa grande penalidade contra as suas cores. O castigo, com toda a franqueza, não teve razão de existir porque Otamendi jogou a bola com a mão fora da sua área.
Conclusão: não é Rolando quem quer. Jogar a bola com a mão dentro da sua área e passar incólume foi o primeiro e muito visto atributo do antigo central do FC Porto, o saudoso Rolando. Mandaram-no embora, agora queixam-se porque Otamendi, aparentemente, não possui os mesmos dons de inocência.
É mesquinhez discutir se o dito Otamendi devia ou não ter sido expulso minutos antes do polémico lance por ter entrado com tudo e mais alguma coisa sobre Luís Leal, jogador do Estoril. Isso pouco importa. É de somenos.
Mandatório é atirar para cima do Benfica, que foi prejudicado em Guimarães à sevandija, com as responsabilidades aparentemente criminais dos actos do senhor Carlos Xistra, em Alvalade, e do senhor Rui Silva, no Estoril.
Mandatório, repito, porque é esta a palavra certa. Mesmo que ainda não exista no dicionário. Verão como vai existir não tarda nada. Mandatário, por exemplo, já existe.
Mandatório ou mandatário, como preferirem, o treinador do FC Porto, o ex-Paulo Fonseca que a todos nos habituou com uma linguagem fleumática, pairando muito acima das vulgaridades correntes, depois de já ter sido bastante desagradável com José Mota, quando foi a Setúbal, veio agora à liça atacar Jesus dando-lhe os parabéns nada sinceros por ter conseguido pontuar a seu favor em três distintos campos. Milagre, lá está. Taumaturgia, nem menos.
E atirou-se ao árbitro por causa do penalty de Otamendi, o ex-Paulo Fonseca como nunca antes o tínhamos visto fazer. Nem quando, na última jornada, viu o seu Paços de Ferreira sofrer castigo igual por causa de uma falta sobre James que ocorreu, sem grande exagero, praticamente ainda no seu meio campo. Moita-carrasco, conhecem a expressão?
A 5.ª jornada do campeonato teve dois curiosos fait-divers. ´
O primeiro aconteceu em Guimarães:
Jorge Jesus viu parte do seu prestígio restabelecido entre muitos benfiquistas – nem todos - porque se atirou, sozinho, de peito feito, contra uma carga policial que visava deter dois adeptos que, tão entusiasmados com aquela vitória em condições tão adversas, se atreveram a correr pelo relvado na busca de camisolas dos seus heróis do momento. Preferia que isto não tivesse acontecido mas respeito todas as opiniões.
Respeitando a ordem das ocorrências, o segundo fait-divers aconteceu na Amoreira:
Adelino Caldeira reforçou todo o seu prestígio já adquirido ao contribuir com carolos e palavras para o ambiente de festa que se gerou na tribuna depois do primeiro golo do Estoril-Praia. O mesmo administrador já tinha dado largas ao seu prestígio há uns meses, em Tavira, por ocasião de um jogo de andebol quando se atirou indignado contra a presença de Bruno de Carvalho, o actual presidente do Sporting, que tinha mencionado a palavra “fruta” uns dias antes.
O fait-divers protagonizado por Jorge Jesus quase toda a gente viu. Deu na televisão. O mais recente fait-divers protagonizado por Adelino Caldeira não teve direito a suporte de imagem, o que é pena. Já o seu anterior episódio curricular com Bruno de Carvalho, em Tavira, também ficou órfão de registo audiovisual.
Dizem-me, com o intuito de serenar os ambientes, que quer Bruno de Carvalho quer Nuno Lobo, o presidente da AF Lisboa, são dois garotos acabadinhos de chegar e que é incrível como se dá guarida às suas declarações incendiárias, sem provas e da mais alta irresponsabilidade.
Não me quero meter sequer nesse assunto. E, com toda a franqueza, penso que nem um nem outro assunto merecem grande perda de tempo embora haja muita gente disposta a passar uma semana inteira a falar da atitude amalucada de Jesus em defesa dos “meninos”. E porquê? Por necessidade política de fazer barulho distraindo a população com os tais fait-divers.
É importante que se fale e fale e fale de Jesus e de como o treinador do Benfica, sozinho e só com os punhos, dizimou o 7.º Regimento de Cavalaria no relvado irrepreensível do Afonso Henriques, o fundador da nacionalidade.
No entanto, o que de mais importante, de mais inovador e fraturante se passou no rescaldo da jornada, tem sido unanimemente ignorado pela comunicação e pelos comunicadores.
Tratou-se do momento mandatório – ou mandatário? - em que o ex-Paulo Fonseca meteu o Sporting Clube de Portugal ao barulho, acusando o treinador do Benfica de ser o responsável por Carlos Xistra não ter assinalado, como devia, uma grande penalidade contra o Rio Ave que poderia redundar, sendo convertida, na vitória da equipa de Alvalade.
São notáveis os tempos presentes. E é de reconhecer, sem pejos, que a veia independentista do actual presidente do Sporting está a provocar impensáveis engulhos ao FC Porto que, invulgarmente perplexo e ziguezagueante, tão depressa responde indo buscar dois miúdos de 15 anos à Academia de Alcochete como se arvora, através do seu actual treinador, em defensor do mesmo Sporting lamentando as injustiças dos árbitros contra os irmãos de armas de Alvalade, embora estes, ao que parece, já não o queiram ser.
Este Sporting do presidente garoto e independentista veio baralhar o status quo que vigora há três décadas com enormes vantagens, a todos os níveis para o FC Porto.
Apontemos, e sem hesitações, uma data certa para o início do regime: 7 de Junho de 1980.
O campeonato tinha terminado com a vitória do Sporting e no Jamor jogava-se a final da Taça de Portugal entre o Benfica e o FC Porto. Mário Wilson contra José Maria Pedroto nos dois bancos. Nas bancadas, Benfica e Sporting torcendo em uníssono contra o FC Porto que acabaria por perder a final por 1-0.
Que anormalidade se terá passado para juntar os adeptos dos dois rivais históricos do futebol português contra um adversário comum? Estava no auge a chamada guerra Norte-Sul e o triunfo do Sporting no campeonato, em luta directa e feroz com o FC Porto, tinha provocado entre os sportinguistas resquícios de cariz dialéctico difíceis de assimilar. Daí essa união anti-natura naquela tarde de 7 de Junho de 1980 no Jamor.
O Benfica levou a Taça e o FC Porto aprendeu nesse dia que contra os dois grandes de Lisboa podia pouco. Toda a política externa do FC Porto desde então tem sido rebaixar a rivalidade dos dois grandes de Lisboa a um fundo de incomensurável estupidez escavado algures na Segunda Circular. E assim tem sido em ciclos invariáveis porque o reportório é curto: ou está de bem com o Benfica contra o Sporting ou está de bem com o Sporting contra o Benfica.
Feitas as contas é uma questão de aritmética.
De 1934/35 até 1979/1980, ou seja, enquanto o FC Porto não percebeu e nem tinha condições para perceber que a guerra Sul-Sul lhe era muito mais profícua do que guerra Norte-Sul, os números dos campeões eram estes:
Benfica – 23 títulos; Sporting – 15 títulos; FC Porto – 7 títulos.
A partir de 1980/1981, os números são estes:
FC Porto – 20 títulos; Benfica – 9 títulos; Sporting – 3 títulos.
No que diz respeito à Taça de Portugal, os números são igualmente esclarecedores.
De 1939 até 1980:
Benfica – 16 títulos; Sporting – 10 títulos; FC Porto – 4 títulos.
A partir de 1981:
FC Porto – 12 títulos; Benfica – 8 títulos; Sporting – 5 títulos.
Ah, como já tínhamos saudades de uma boa guerra Norte-Sul!